Regulação de criptoativos: por que é tão importante regular moedas digitais?

“A segurança jurídica é necessária para estabilizar as expectativas dos agentes econômicos e o direito de propriedade é elemento essencial do sistema capitalista”[i].

Conforme explica Isaac Costa no referido artigo, recorremos a entes estatais ou privados para assegurar o sigilo, a integridade e a autenticidade dos dados relativos a direito de propriedade.

Os algoritmos criptográficos surgem para auxiliar na garantia dessas bases do direito à propriedade, visto que através da criptografia é possível assegurar os pilares da Segurança da Informação: confidencialidade[ii], integridade[iii], disponibilidade[iv] e autenticidade[v].

Logo, compartilhamos do mesmo pensamento de Isaac Costa, de que, no mundo moderno, é essencial o uso da criptografia em sistemas que gerenciam a propriedade dos bens: cartórios de registros de imóveis, de notas e títulos, prestadores de serviços de escrituração, infraestruturas do mercado financeiro e centrais registradoras (Banco Central).

Nesse sentido, surge o bitcoin como alternativa descentralizadora aos sistemas financeiros já conhecidos, conferindo transparência e maior autonomia aos usuários.

Um dos fatores determinantes para a criação do bitcoin foram as dificuldades enfrentadas ao efetuar transferências internacionais de valores.

Atualmente, em qualquer transação internacional há altas taxas cobradas pelo sistema financeiro mundialmente utilizado, além do que a burocracia envolvida acaba por favorecendo inúmeros atos de corrupção, incluindo desde crimes financeiros até o subsídio da criminalidade como um todo, onde as partes acabam por operar com dinheiro em espécie (“papel-moeda”) para fugir da fiscalização financeira.

Com a regulação dos criptoativos e sua popularização, será possível conceder ao cidadão maior poder e autonomia para transacionar, sem altas taxas e sem ter que operar com os bancos tradicionais, possibilitando-lhe acesso à diversas Exchanges ou aos bancos digitais de sua preferência.

Dessa forma, as operações financeiras digitais através de criptoativos serão cada vez mais comuns, sendo o uso do dinheiro em espécie uma exceção. Assim, com o tempo, a restrição ao uso do papel-moeda acaba por dificultar a prática de corrupção, que certamente não operará digitalmente, devido à transparência do novo sistema. Futuramente, o dinheiro em espécie ficará atrelado somente àqueles que praticam atos associados à corrupção e crimes financeiros.

Imagine uma empresa distribuidora de equipamentos eletrônicos: em um sistema de blockchain, todo o fluxo de pagamentos, recebimentos e demais conciliações bancárias poderá ser efetuado dentro de uma carteira digital (wallet) determinada por uma criptomoeda específica. Assim que o consumidor online compra um produto através da blockchain, o valor já é repartido entre a empresa distribuidora e seu fornecedor, automaticamente.

Portanto, o sistema de blockchain passa a ser utilizado para inúmeras finalidades: transações financeiras, assinatura de contratos, testamentos, registros de imóveis, compra e venda de bens, etc.

A EVOLUÇÃO DO DINHEIRO: Criptoativos como meio de pagamento

O dinheiro na forma como conhecemos hoje, especialmente em papel moeda, vai deixar de existir em um futuro breve.

Os governos mundiais estão trabalhando fortemente com blockchain e estão investindo cada vez mais nas CDBCs (Central Bank Digital Currency), as moedas digitais emitidas por Bancos Centrais.

Cada país terá a sua própria moeda digital (dólar digital, libra digital, real digital, etc). Essa digitalização da moeda será implantada rapidamente, por necessidades governamentais e formas de evitar algumas restrições de embargos internacionais criados. Um exemplo: a Rússia está sofrendo com a guerra contra a Ucrânia nesse momento, e consequentemente, sofre com embargo internacional. Se a Rússia precisar pagar um fornecedor no Brasil, ela terá que transacionar em reais (moeda local). Se a Rússia estiver em uma lista de embargos internacionais, não conseguirá fazer essa transação internacional com o rublo ou com o dólar.

Então, devido ao seu bloqueio internacional, a alternativa nesse caso seria utilizar um sistema financeiro gerenciado pelos Estados Unidos, chamado SWIFT.

Todas as transações lícitas acabam circulando pelo sistema SWIFT, e então são rastreáveis pelos EUA. Logo, há um gerenciamento desse sistema de forma mundial. E efetuar transação internacional em moeda diversa do seu país pode ser extremamente custoso. Portanto, em alguns casos, os envolvidos tentam fazer tais transações por outras alternativas, que podem eventualmente serem ilícitas e não rastreáveis (como por exemplo: narcotráfico, compra ilegal de armas, etc).

Diante disso, surge a grande preocupação dos Bancos Centrais mundiais em criar suas moedas digitais, para minimizar ilícitos financeiros e outros crimes.

Ao terem suas próprias moedas digitais, os países passam a ter a possibilidade de transacionar digitalmente de forma internacional e totalmente lícita, sem que suas operações passem pelo sistema SWIFT.

Através de transações realizadas por intermédio de moedas digitais, o sistema SWIFT não tem como gerenciar e portanto, isso significa dizer que os EUA também não poderão ter a rastreabilidade desses valores. É como se as transações financeiras internacionais fossem feitas “P2P” (peer to peer): direto de um país para outro, sem a intervenção do sistema financeiro mundial.

Isso para o sistema financeiro e bancário pode ser visto de forma negativa, pois há taxas altíssimas cobradas nessas transações. Por isso todos os bancos centrais estão trabalhando fortemente na regulação de suas moedas digitais, a fim de passarem a taxar os detentores de criptoativos o quanto antes. (Lembrando que “criptoativos” não envolve somente bitcoin, há também as stables coins (similar à uma moeda fiduciária atrelada à blockchain).

Todos os dias há milhares de moedas digitais sendo transacionadas sem passar por uma chancela entre países. Essas operações não são rastreáveis pelo sistema SWIFT. Sem a chancela de um governo, as moedas digitais são transacionadas pelas Exchanges. Logo, os governos não possuem meios – por enquanto – para taxar essas moedas digitais.

Esse é um dos motivos que têm acelerado os governos a buscarem a regulação de seus criptoativos: possibilidade de taxação das moedas digitais e suas transações.

No Brasil, a procura pela regulação das criptomoedas é para que o Governo possa cobrar o IOF das movimentações financeiras ocorridas através das blockchains, bem como poder bloquear bens digitais do cidadão.

Para facilitarmos a compreensão do assunto, citamos um exemplo hipotético: um indivíduo é funcionário público e recebe sua remuneração em criptomoedas, para evitar a rastreabilidade. Se os criptoativos forem regulados, ao receber o seu salário, esse dinheiro é cunhado pelo BACEN e tem uma espécie de “chassi”: o dinheiro digital vai para a conta desse servidor público, entrando em sua carteira (“wallett”) que é considerada pessoal. Esse servidor somente poderá receber criptomoedas em uma única carteira digital, oficializada pelo governo, taxada pelo BACEN. Ao receber o seu pagamento, esse dinheiro possui lastro, é rastreável e o Estado saberá sempre para onde esse dinheiro está indo. Se ele tiver outra carteira, para recebimentos “por fora”: poderá ser considerado como ilícito, facilmente rastreável.

Essa “auditoria” do dinheiro será factível: poderá ser vista pelo Governo e qualquer pessoa, pois as “wallets” são públicas.

Assim, qualquer tipo de ilegalidade financeira terá que ser feito somente por dinheiro fiduciário[1], em papel moeda.

Há o lado positivo disso: diminuição da corrupção e toda a criminalidade associada a tais situações.

Portanto, toda a economia legalizada de um país estaria digitalizada.

No futuro, ninguém mais vai transacionar com papel moeda, mas sim através de blockchain.

O uso de papel moeda acabará sendo mal-visto, estando associado somente a pagamentos não rastreáveis e com alta possibilidade de serem ilícitos.

REGULAÇÃO DE CRIPTOATIVOS NO BRASIL

A regulamentação de criptoativos significa, sobretudo, garantir segurança às partes que realizam as operações dentro deste mercado.

No Brasil, até hoje, não existe uma lei específica sobre o assunto.

No entanto, existem diversos Projetos de Lei em tramitação, entre eles: PL 2.303/2015, PL 2.060/2019, PL 3.825/2019, PL 3.949/2019, PL 4.207/2020, PL 2.140/2021, PL 2.234/2021, que analisamos rapidamente a seguir.

  • PL 2.303/2015 e 2.060/2019

Iniciados na Câmara dos Deputados, estes projetos, que posteriormente foram agrupados, com o novo texto assumindo o nome do mais antigo, previam:

1)  Inclusão das criptomoedas no termo “arranjos de pagamento”, que deveriam ser regulamentados pelo Banco Central;

2)  Inclusão no Código Penal da modalidade de crime de emissão de criptomoedas sem a permissão da CVM (Comissão de Valores Mobiliários);

3)  Que a emissão de criptos possa ser realizada apenas se a finalidade for compatível com a atividade ou o mercado de atuação do emissor.

  • PL 3.825/2019

Segundo este PL, é necessária a permissão do Banco Central para que exchanges tenham o direito de operar no Brasil, o qual deveria garantir a competitividade entre as operadoras. Além disso, as exchanges não poderiam usar o nome “banco”, bem como deveriam ser obrigadas a prestar informações aos clientes e a Receita Federal.

Em dezembro de 2021, foi aprovada a redação final do PL 2.303/2015, requerendo que fosse apensado ao PL 3.825/2019, passando a tramitar como PL 4.401/2021.

  • PL 3.949/2019

Outro projeto apresentado em 2019, o PL 3.949 possui o intuito de estabelecer condições para que haja o funcionamento das exchanges no Brasil com prestação de contas à Receita Federal, por exemplo. Além de que os recursos investidos pelos clientes não seriam considerados da companhia, mas dos próprios clientes.

  • PL 4.207/2020

Além de impor a responsabilidade ao BACEN e à CVM de regular o mercado de criptomoedas, este projeto de lei defende a criação de um comitê interministerial de acompanhamento e monitoramento de atividades relacionadas aos criptoativos.

  • PL 2.140/2021

Este PL pretende estabelecer um prazo de 180 dias para o BACEN regulamentar as transações de criptomoedas.

  • PL 2.234/2021

Este PL busca aumentar a pena do crime de lavagem de dinheiro praticado por meio de criptomoedas, tendo em vista que atualmente, a pena prevista é de 3 a 10 anos de reclusão e multa.  Já o projeto busca aumenta-la para o período de 4 a 16 anos e 8 meses de reclusão e multa.

  • NA ATUALIDADE:

Já em 2022, incorporou-se as ideias presentes nos PL 3.825/2019, no PL 3.949/2019 e no PL 4.207/2020 e foi apresentado um substitutivo ao PL 4.401/2021, na busca de implementação de diretrizes para a prestação de serviços de ativos virtuais, incluindo as boas práticas de governança nas operações, segurança de informação, proteção de dados, proteção aos usuários, prevenção à lavagem de dinheiro, à ocultação de bens e ao financiamento terrorista, além de regulamentar as exchanges de criptoativos.

Este PL procura também alterar o Código Penal para acrescentar a fraude em prestação de serviços de ativos virtuais, valores imobiliários e ativos financeirosTal PL foi aprovado no Senado em abril de 2022, também foi aprovado pela Câmara dos Deputados, e está em fase de recebimento de emendas e pareceres. Deverá posteriormente ser encaminhado para apreciação do Presidente da República.

Isso tudo tem a ver com a web 3.0: a internet de valor, onde a web é utilizada para sistemas financeiros. É daí que virá a nova revolução industrial, através de metaverso e blockchain.

Os bancos serão todos digitalizados.

Haverá uma descentralização do sistema bancário, haverá o defi: os bancos estão dentro da blockchain e passarão a transacionar somente por esta via.

Não haverá mais agências físicas para atendimento ao público comum. As agências atenderão somente clientes prime.

O dinheiro passará a ter cada vez mais lastro e rastreabilidade, e consequentemente, transparência. Grandes fortunas passarão a ser taxadas, e certamente os detentores dessas fortunas, que já possuem seus capitais em criptomoedas, justamente para evitar a fiscalização, passarão a ter esses valores taxados.

Essa seria a grande vantagem da regulação dos criptoativos.

CONCLUSÕES

A regulação não favorece o investidor pequeno, formada pela grande maioria dos indivíduos que investem em criptos. Nenhum cidadão quer ver o Governo fiscalizando isso.

Mas a regulação visa fiscalizar os grandes players: as Exchanges – grandes fundos com dinheiro envolvido digitalmente. Há grandes bancos que já operam desta forma e outros estão ingressando nesse formato.

A regulação dos criptoativos é essencial para avançarmos em uma nova era da economia, com maior transparência, licitude e rastreabilidade.

É uma forma juridicamente válida, rápida e eficaz de integrarmos tecnologia, economia e desenvolvimento.

Autora:

Gisele Truzzi

Advogada especialista em Direito Digital e Segurança da Informação;